
Performing Matters — Vera Mota
Galeria Bruno Múrias, Lisboa
05.04.2024 — 11.07.2024
Na prática artística de VERA MOTA (Porto, 1982), a escultura é o encontro entre o tempo da matéria e o tempo do corpo. Quando em 2002, ainda estudante, a artista reivindica como escultura uma performance onde o seu corpo mergulhava em tanques de barro fresco, tornavam-se evidentes as grandes forças que viriam a estar em constante magnetismo no seu trabalho, aquela do corpo — ora atuante e inscrito; ora sugerido por traços de funcionalidade e ergonomia —, e aquela da matéria. Num trabalho onde a política corporal parece atuar como elemento subliminar em todas as obras — nomeadamente evidenciando, tanto a compreensão no manuseamento da matéria, como a revelação das propriedades materiais da própria existência humana — paira a anunciação de uma cadência vertebral, motora e maleável transtornada pelos fenómenos da fadiga, da severidade e da repetição mecânica de um gesto.
No seu ensaio de 1920, God is not cast down, Kazimir Malevich propõe, ao refletir sobre a ideia de totalidade num contexto que equipara a igreja e a fábrica à arte, uma carência de auto fluidez (dissolução do eu) do corpo enquanto matéria. De algum modo anulativa enquanto estímulo e suprimida enquanto fenómeno, esta diz prologar a presença do homem contemporâneo na sua convivência com o mundo. Tal mudança de paradigma, que para além de si não exclui o desejo premente em se encontrar imiscuindo-se na totalidade do universo terá, por entre linhas, que ver com a alteração da razão da existência vinculadamente dependente a uma alegoria à eternidade. À semelhança do que algumas correntes da filosofia existencialista do século XX nomeavam de estado metafísico — tão ferozmente defendido como um fim absoluto para aqueles que nos trabalhos espirituais se demoram —, Malevich sugere o crescendo da emancipação da crença em que a eternidade reside em lugares e formas vinculados à ideia de alma e espírito, antes reduzindo essa expectativa à imagem (sabemos, inalcançável) da matéria perfeita. Surge então a questão: será que a matéria existe? Será o que chamamos matéria simplesmente uma série de movimentos espirituais e será o espírito, talvez, o que chamamos de movimento da matéria? [1]
Também na prática artística de Vera Mota se manifestam, num interior nunca encerrado — como, aliás, o Weltanschauung [2] determina —, os sintomas plásticos de um corpo-objeto que se movimenta em perpétua tentativa de auto-otimização. Tal fenómeno, fruto da sensação de uma escassez funcional e de uma irreal produtividade, adoece o corpo — ambos máquina e espírito —, com uma compulsão patológica para a alienação. Ao desafiar incessantemente as qualidades plásticas da matéria, é através de um recurso sofisticado ao ritmo gestual e à transformação industrial que o trabalho da artista se contorce e se ergue dualmente perante o exercício da abstração. Em toda a sua abismal e devoradora inacessibilidade é, num contexto puro, a vontade da matéria que dita o nunca confortável transtorno da cristalização do objeto; já no espaço expositivo, esta é trabalhada por Mota, ora através de um engano aos processos naturais das massas que trabalha, potenciando uma farsa plástica; ora, antes, no compromisso de um consentimento negociado entre o corpo disforme e as condições que o permitem adaptar-se ao seu gesto.
As provocações dos elementos aos quais a artista recorre, muitas vezes com miríades próprias de auto-transformação, transcendem então a particularidade verificada em Performing Matters, uma exposição coreografada e, como o título indica, performada sob a égide das matérias atuantes que em si detém e organiza. Se a transferência da qualidade performativa para os materiais não impede que se adivinhe um corpo, é na relação do corpo da artista com as qualidades plásticas do corpo das matérias — sejam estas o mármore, o basalto, o silicone ou o alumínio —, que reside o fluxo pós-metafísico anteriormente abordado. Os seus comportamentos preambulam a cadeia ação-reação escultórica a cada instante visual, espacial e temporal pois, se por um lado a aparente sinuosidade e estranha ternura tátil dos materiais se verifica eminente, também a reação antagónica do confronto com a dureza, resiliência e resistência fria as subitamente invade, desconcertando-as e conferindo-lhes aquela que é uma perceção frequente no trabalho da artista — uma espécie de estranha familiaridade [3].
It’s interesting just to create a situation where people come, and then it’s something. It has to be a certain element of not knowing exactly what’s going to happen. Just when you think you’re going to come back and see something that you know, it’s different. [4]
Retornando à imagem de um gesto que se reitera perante uma superfície atuante, Sem título (Mármore) revela um enigmático e quase encriptado desenho na sua materialidade. Trata-se, na verdade, do isolamento de um micro movimento dos dedos da artista sobre barro, agora ampliado numa matéria onde a inscrição maleável seria, naturalmente, inverosímil. Por outro lado, flexiona-se aqui aquele que é o movimento pendular que dita a própria organização formal da exposição — uma iteração onde o léxico corporal nunca se evade da memória dos objetos —, a reentrância de um dedo que lembra um osso e se assemelha ao desenho da cartilagem de uma orelha desmembrada. Este fantasma que é o corpo, conduz-nos também a Sem título (Silicone), uma presença suspensa que, muito vagarosamente, gira perante o seu eixo de equilíbrio. A textura do silicone, cuja transparência leitosa nos aproxima de uma materialidade interna ao corpo, desmaia perante o seu recorte multiplicado, evidenciando o que aparenta ser um objeto disforme. A reminiscência a uma estrutura vocal, bem como à anatomia de uma garganta, enfatizam a sua flexibilidade e impermanência relativa, potenciando os limites da própria matéria perante as condições articuladas para a receber. Apesar de todo o seu movimento, a forma sustém a mesma fisicalidade, não se deformando.
À semelhança do que acontece nas suas mais recentes instalações e objetos escultóricos, observamos em Sem título (Basalto) a gravidade de uma grande massa cuja intrigante plasticidade remete o espetador para o campo da penugem e do cabelo — esse lugar íntimo aqui tão inquietante e desconfortável. Sabemos, porém, estar perante um processo industrial altamente sofisticado que reduz o mineral ao seu estado líquido, solidificando-o, posteriormente, em finíssimos fios de cristal. Repousando na sua aparente voluptuosidade, a farsa da escultura face à escultora, encontra-se no ensaio de controlo e na consequente incapacidade de esta impedir o seu constante movimento, desfiando e reconfigurando as suas nuances indomáveis num lento exercício de queda em direção ao chão. O humano quer ser erupção, mas não consegue domar a lava.
Talvez as obras Sem título (Alumínio) e Headrests (In the studio with Donald Judd) sejam os trabalhos onde a influência do minimalismo na obra da artista mais se evidencia. Nestes elementos, a força gravitacional está arremessada aos limites das paredes e a sua pontualidade, ora cenográfica, ora performática, situa-os como faróis para o entendimento da exposição. No limite, poderíamos até mesmo afirmar que a obra que referencia assumidamente o trabalho de Judd é, talvez, a que nos coloca verdadeiramente no corpo participativo da artista. Nascendo de um encontro seu com a casa do minimalista, faz referência à singeleza da presença de um repousa-cabeças etíope sobre um tapete no canto do seu estúdio. Aqui convocado não somente enquanto memória desse detalhe, nem tão pouco apenas aludindo às suas icónicas esculturas de parede, a obra desloca a noção de contemplação tradicional para uma confrontação contemporânea face à distinção/disfunção hierárquica entre a cabeça e os restantes membros do corpo — preocupação, aliás, transversal a todo o trabalho de Vera Mota.
Uma vez mais é o fluxo — essa energia invisível e permanente, que evidencia a órbita que sintoniza o humano com o seu mundo — a ditar, antes de tudo, o ritmo e a repetição enquanto potências com capacidades de resiliência e transformação abaladoras. Contudo, se a dúvida da detenção da perfeição permanece incógnita — existindo numa ramificação divina ou numa extrapolação funcional e mecânica — a certeza da finitude dir-nos-ia que a totalidade não é um fim plausível de alcançar, tanto ao espírito como à matéria que, à imagem do humano, não existem um sem o outro.
All things are finite but all of them are involved in the infinite material flow. The materialist totality is then the totality of the flow. [5]
[1] Malevich, Kazimir, in God is not cast down, 1920. Tradução livre.
[2] Termo alemão frequentemente associado à ideia de cosmovisão ou mundividência.
[3] Termo derivado do ensaio Das Umheimliche (1919) de Sigmund Freud.
[4] Gordon, Kim, in Is it my body? Selected texts, Steinberg Press, 2014.
[5] Groys, Boris. In Entering the flow, Realism Materialism Art, Steinberg Press, 2015.
*English translation*
Na prática artística de VERA MOTA (Porto, 1982), a escultura é o encontro entre o tempo da matéria e o tempo do corpo. Quando em 2002, ainda estudante, a artista reivindica como escultura uma performance onde o seu corpo mergulhava em tanques de barro fresco, tornavam-se evidentes as grandes forças que viriam a estar em constante magnetismo no seu trabalho, aquela do corpo — ora atuante e inscrito; ora sugerido por traços de funcionalidade e ergonomia —, e aquela da matéria. Num trabalho onde a política corporal parece atuar como elemento subliminar em todas as obras — nomeadamente evidenciando, tanto a compreensão no manuseamento da matéria, como a revelação das propriedades materiais da própria existência humana — paira a anunciação de uma cadência vertebral, motora e maleável transtornada pelos fenómenos da fadiga, da severidade e da repetição mecânica de um gesto.
No seu ensaio de 1920, God is not cast down, Kazimir Malevich propõe, ao refletir sobre a ideia de totalidade num contexto que equipara a igreja e a fábrica à arte, uma carência de auto fluidez (dissolução do eu) do corpo enquanto matéria. De algum modo anulativa enquanto estímulo e suprimida enquanto fenómeno, esta diz prologar a presença do homem contemporâneo na sua convivência com o mundo. Tal mudança de paradigma, que para além de si não exclui o desejo premente em se encontrar imiscuindo-se na totalidade do universo terá, por entre linhas, que ver com a alteração da razão da existência vinculadamente dependente a uma alegoria à eternidade. À semelhança do que algumas correntes da filosofia existencialista do século XX nomeavam de estado metafísico — tão ferozmente defendido como um fim absoluto para aqueles que nos trabalhos espirituais se demoram —, Malevich sugere o crescendo da emancipação da crença em que a eternidade reside em lugares e formas vinculados à ideia de alma e espírito, antes reduzindo essa expectativa à imagem (sabemos, inalcançável) da matéria perfeita. Surge então a questão: será que a matéria existe? Será o que chamamos matéria simplesmente uma série de movimentos espirituais e será o espírito, talvez, o que chamamos de movimento da matéria? [1]
Também na prática artística de Vera Mota se manifestam, num interior nunca encerrado — como, aliás, o Weltanschauung [2] determina —, os sintomas plásticos de um corpo-objeto que se movimenta em perpétua tentativa de auto-otimização. Tal fenómeno, fruto da sensação de uma escassez funcional e de uma irreal produtividade, adoece o corpo — ambos máquina e espírito —, com uma compulsão patológica para a alienação. Ao desafiar incessantemente as qualidades plásticas da matéria, é através de um recurso sofisticado ao ritmo gestual e à transformação industrial que o trabalho da artista se contorce e se ergue dualmente perante o exercício da abstração. Em toda a sua abismal e devoradora inacessibilidade é, num contexto puro, a vontade da matéria que dita o nunca confortável transtorno da cristalização do objeto; já no espaço expositivo, esta é trabalhada por Mota, ora através de um engano aos processos naturais das massas que trabalha, potenciando uma farsa plástica; ora, antes, no compromisso de um consentimento negociado entre o corpo disforme e as condições que o permitem adaptar-se ao seu gesto.
As provocações dos elementos aos quais a artista recorre, muitas vezes com miríades próprias de auto-transformação, transcendem então a particularidade verificada em Performing Matters, uma exposição coreografada e, como o título indica, performada sob a égide das matérias atuantes que em si detém e organiza. Se a transferência da qualidade performativa para os materiais não impede que se adivinhe um corpo, é na relação do corpo da artista com as qualidades plásticas do corpo das matérias — sejam estas o mármore, o basalto, o silicone ou o alumínio —, que reside o fluxo pós-metafísico anteriormente abordado. Os seus comportamentos preambulam a cadeia ação-reação escultórica a cada instante visual, espacial e temporal pois, se por um lado a aparente sinuosidade e estranha ternura tátil dos materiais se verifica eminente, também a reação antagónica do confronto com a dureza, resiliência e resistência fria as subitamente invade, desconcertando-as e conferindo-lhes aquela que é uma perceção frequente no trabalho da artista — uma espécie de estranha familiaridade [3].
It’s interesting just to create a situation where people come, and then it’s something. It has to be a certain element of not knowing exactly what’s going to happen. Just when you think you’re going to come back and see something that you know, it’s different. [4]
Retornando à imagem de um gesto que se reitera perante uma superfície atuante, Sem título (Mármore) revela um enigmático e quase encriptado desenho na sua materialidade. Trata-se, na verdade, do isolamento de um micro movimento dos dedos da artista sobre barro, agora ampliado numa matéria onde a inscrição maleável seria, naturalmente, inverosímil. Por outro lado, flexiona-se aqui aquele que é o movimento pendular que dita a própria organização formal da exposição — uma iteração onde o léxico corporal nunca se evade da memória dos objetos —, a reentrância de um dedo que lembra um osso e se assemelha ao desenho da cartilagem de uma orelha desmembrada. Este fantasma que é o corpo, conduz-nos também a Sem título (Silicone), uma presença suspensa que, muito vagarosamente, gira perante o seu eixo de equilíbrio. A textura do silicone, cuja transparência leitosa nos aproxima de uma materialidade interna ao corpo, desmaia perante o seu recorte multiplicado, evidenciando o que aparenta ser um objeto disforme. A reminiscência a uma estrutura vocal, bem como à anatomia de uma garganta, enfatizam a sua flexibilidade e impermanência relativa, potenciando os limites da própria matéria perante as condições articuladas para a receber. Apesar de todo o seu movimento, a forma sustém a mesma fisicalidade, não se deformando.
À semelhança do que acontece nas suas mais recentes instalações e objetos escultóricos, observamos em Sem título (Basalto) a gravidade de uma grande massa cuja intrigante plasticidade remete o espetador para o campo da penugem e do cabelo — esse lugar íntimo aqui tão inquietante e desconfortável. Sabemos, porém, estar perante um processo industrial altamente sofisticado que reduz o mineral ao seu estado líquido, solidificando-o, posteriormente, em finíssimos fios de cristal. Repousando na sua aparente voluptuosidade, a farsa da escultura face à escultora, encontra-se no ensaio de controlo e na consequente incapacidade de esta impedir o seu constante movimento, desfiando e reconfigurando as suas nuances indomáveis num lento exercício de queda em direção ao chão. O humano quer ser erupção, mas não consegue domar a lava.
Talvez as obras Sem título (Alumínio) e Headrests (In the studio with Donald Judd) sejam os trabalhos onde a influência do minimalismo na obra da artista mais se evidencia. Nestes elementos, a força gravitacional está arremessada aos limites das paredes e a sua pontualidade, ora cenográfica, ora performática, situa-os como faróis para o entendimento da exposição. No limite, poderíamos até mesmo afirmar que a obra que referencia assumidamente o trabalho de Judd é, talvez, a que nos coloca verdadeiramente no corpo participativo da artista. Nascendo de um encontro seu com a casa do minimalista, faz referência à singeleza da presença de um repousa-cabeças etíope sobre um tapete no canto do seu estúdio. Aqui convocado não somente enquanto memória desse detalhe, nem tão pouco apenas aludindo às suas icónicas esculturas de parede, a obra desloca a noção de contemplação tradicional para uma confrontação contemporânea face à distinção/disfunção hierárquica entre a cabeça e os restantes membros do corpo — preocupação, aliás, transversal a todo o trabalho de Vera Mota.
Uma vez mais é o fluxo — essa energia invisível e permanente, que evidencia a órbita que sintoniza o humano com o seu mundo — a ditar, antes de tudo, o ritmo e a repetição enquanto potências com capacidades de resiliência e transformação abaladoras. Contudo, se a dúvida da detenção da perfeição permanece incógnita — existindo numa ramificação divina ou numa extrapolação funcional e mecânica — a certeza da finitude dir-nos-ia que a totalidade não é um fim plausível de alcançar, tanto ao espírito como à matéria que, à imagem do humano, não existem um sem o outro.
All things are finite but all of them are involved in the infinite material flow. The materialist totality is then the totality of the flow. [5]
[1] Malevich, Kazimir, in God is not cast down, 1920. Tradução livre.
[2] Termo alemão frequentemente associado à ideia de cosmovisão ou mundividência.
[3] Termo derivado do ensaio Das Umheimliche (1919) de Sigmund Freud.
[4] Gordon, Kim, in Is it my body? Selected texts, Steinberg Press, 2014.
[5] Groys, Boris. In Entering the flow, Realism Materialism Art, Steinberg Press, 2015.

© Bruno Lopes
© Galeria BRUNO MÚRIAS